Aos 92 anos, a ex-empregada doméstica Nair Jane de Castro Lima enfrentou o sol de inverno neste domingo (28) na orla de Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, para participar da 10ª edição da Marcha das Mulheres Negras no estado. Ela, que foi líder sindical e defensora dos direitos dos trabalhadores domésticos, enxerga na sua participação no ato uma mistura de resistência e exemplo para novas gerações.
“A resistência na luta pelos direitos do negro, pela igualdade que ainda buscamos, é fundamental. Os jovens precisam aprender a caminhar e ter coragem”, disse Nair Jane de Castro Lima à Agência Brasil.
A manifestação teve o objetivo de unir gerações. A poucos metros da ativista de 92 anos, participavam da marcha pais e responsáveis com crianças e adolescentes. Luciane Costa, acompanhada das netas Manuela, de apenas três anos, e Mirela, de seis, destacou a importância de as crianças frequentarem ambientes de reivindicação coletiva desde cedo. “Para que elas cresçam sabendo que nossa existência é importante para um mundo mais justo e igualitário. Nós, mulheres, somos o útero desse mundo e precisamos ser respeitadas”, explicou.
A marcha, organizada pelo Fórum Estadual de Mulheres Negras, reuniu milhares de pessoas e encerrou a semana de mobilização pelo Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, celebrado em 25 de julho, além do Julho das Pretas, uma agenda coletiva de manifestações e celebrações ao longo do mês.
Clatia Vieira, uma das organizadoras, assinala que a caminhada representa mulheres negras de favelas, terreiros, comunidades e periferias de 52 dos 92 municípios do Rio de Janeiro. “Estamos marchando também por moradia, por uma educação pensada por nós e por uma vida sem violência para as mulheres negras”, lista Clatia.
“O racismo faz mal para toda a sociedade, o racismo mata, o racismo adoece. Quando respeitamos as mulheres negras, estamos respeitando toda a sociedade”, declara Clatia Vieira.
Estatísticas provam que mulheres negras enfrentam desafios mais pesados que outros segmentos da sociedade brasileira. Na economia, são as principais vítimas do desemprego. Em 2023, as mulheres negras de 18 a 29 anos tiveram uma taxa de desemprego três vezes maior que a dos homens brancos no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) analisados pela organização Ação Educativa. Além disso, a juventude feminina negra tem uma renda 47% menor que a média nacional.
No âmbito da segurança, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 18 de julho, revela que 63,6% das vítimas de feminicídio foram mulheres negras em 2023, um aumento em relação aos 61,1% do ano anterior. Em relação à violência sexual, entre 2012 e 2023, a proporção de mulheres negras vítimas saltou de 56,4% para 63,2%.
Clatia Vieira conta que o ato é também um protesto por duas pautas específicas. Uma delas é contra decisões judiciais que absolvem agentes de segurança envolvidos na morte de negros. Ela cita o exemplo do jovem João Pedro, de 14 anos, morto com um tiro de fuzil pelas costas dentro da casa de parentes durante operação policial na comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo, em 18 de maio de 2020. A Justiça, após analisar as provas e depoimentos, entendeu que os agentes agiram em legítima defesa.
Outro tema é o Projeto de Lei 1904/24, que tramita na Câmara dos Deputados, e prevê que o aborto realizado acima de 22 semanas de gestação, em qualquer situação, seja considerado homicídio, inclusive no caso de gravidez resultante de estupro.
Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil, classifica a marcha como “vários gritos, várias reivindicações e afirmações”. “Os gritos denunciam a injustiça que afeta as mulheres negras e suas famílias”, disse. Ela ressalta a importância de levar vozes de mulheres negras para as ruas. “Somos o principal segmento populacional do Brasil, somos a maioria no Brasil e negligenciadas com violação de direitos humanos a todo tempo”.
O Brasil tem 60,6 milhões de mulheres negras, sendo 11,30 milhões de pretas e 49,3 milhões de pardas, o que corresponde a 28,3% da população, de acordo com o Censo de 2022 (IBGE). “Queremos os meninos negros vivos, queremos mulheres negras vivas, queremos um Brasil sem racismo”, manifestou Werneck.
Por toda a marcha, viam-se faixas e cartazes que identificavam grupos e reivindicações. Um deles era de combate ao racismo obstétrico e mortalidade materna negra. “São as mulheres negras as que mais morrem durante a gestação, parto e puerpério”, aponta Gabriella Santoro, presidente da Associação de Doulas do Estado do Rio de Janeiro.
Dados do Ministério da Saúde mostram que, em 2022, o índice de mortes maternas de negras era de 100,38 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos. No caso de pardas, era 50,36. Entre as brancas, a taxa baixava para 46,56. Gabriella Santoro explica que parte do racismo durante o parto é baseado em ideias preconceituosas. “Mulheres negras recebem menos alívio para dor durante o parto porque há uma ideia preconcebida e preconceituosa de que negras aguentam mais a dor que brancas, então a elas é negada a analgesia durante o parto”, exemplifica.
Representantes de comunidades quilombolas circulavam entre as manifestantes. Uma delas era Adriana Silva, do Movimento Nacional Quilombo Novembro Negro. Para ela, a presença na marcha era também uma questão de visibilidade, especialmente agora que o IBGE traz dados detalhados sobre a população quilombola pela primeira vez. “A importância de os movimentos estarem participando é ter visibilidade. Tem toda uma história e nós somos resistentes. É importante que a sociedade venha ver e reconhecer que é necessário fazer uma igualdade entre o povo negro e não negro”, disse.
Clatia Vieira, organizadora da Marcha das Mulheres Negras, considera que a 10ª edição da caminhada é “um apanhado” das outras nove edições. Ela espera que, em dez anos, haja avanços na questão racial no país, de forma que o ato possa acontecer com uma atmosfera de menos contestação e mais celebração. “Até aqui, temos marchado para contestar e denunciar. Esperamos que daqui a dez anos seja um encontro de alegria, que possamos olhar para o Poder Legislativo e ver mais mulheres. Daqui a dez anos, queremos uma mulher preta presidente, queremos ver as mulheres negras em pé de igualdade com essa branquitude”, desejou.
O Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, em 25 de julho, foi criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) durante o 1º Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas, em Santo Domingo, na República Dominicana, em 1992. No Brasil, a data também é uma homenagem a Tereza de Benguela, conhecida como Rainha Tereza, que viveu no século 18, no Vale do Guaporé, em Mato Grosso, e liderou o Quilombo de Quariterê.
Fonte: Agência Brasil