Uma lei municipal que proibia homenagens no Rio de Janeiro a figuras históricas associadas à escravidão, racismo, e atos lesivos aos direitos humanos foi oficialmente revogada pouco mais de um ano após sua entrada em vigor. A decisão de revogar a Lei Municipal 8.205/2023 foi sancionada recentemente pelo prefeito Eduardo Paes, a partir de um novo projeto aprovado pela Câmara Municipal.
A lei original, de autoria dos vereadores Chico Alencar (PSOL) e Mônica Benício (PSOL), foi criada para impedir novas homenagens e retirar do espaço público monumentos, estátuas e placas dedicadas a escravocratas, eugenistas e outros responsáveis por ações contrárias aos direitos humanos. A medida previa que tais itens fossem transferidos para espaços museológicos, onde seriam acompanhados de informações contextualizadas.
Aprovada em outubro de 2023, a lei foi sancionada tacitamente, sem veto ou aprovação explícita do prefeito no prazo legal. Contudo, sua revogação foi articulada por um grupo de vereadores, incluindo Dr. Gilberto (SDD), Dr. Rogério Amorim (PL), Carlo Caiado (PSD), Pedro Duarte (Novo) e Carlos Bolsonaro (PL). A justificativa apresentada pelos proponentes afirmava que a medida era ampla demais e poderia afetar “personalidades históricas de relevância para o país”.
A revogação da lei foi aprovada por 24 votos contra 7 em dezembro de 2024, convertendo-se na Lei Municipal 8.780/2025. O resultado provocou reações intensas. A vereadora Monica Benício defendeu a permanência da lei como uma forma de reparação histórica e destacou a necessidade de debater as homenagens sob uma ótica que contemple diferentes perspectivas. “O que queremos é trazer um debate que inclua todas as vozes, não apenas a visão do colonizador”, afirmou.
Por outro lado, defensores da revogação alegaram que a lei poderia abrir precedentes para a remoção de homenagens sem critérios claros. “Não dá para julgar personalidades históricas complexas com os valores do presente”, argumentou o vereador Pedro Duarte. Ele citou o exemplo de Winston Churchill no Reino Unido, onde também houve debates sobre a remoção de estátuas.
A plataforma Galeria de Racistas, formada por pesquisadores e coletivos antirracistas, foi uma das principais vozes em defesa da Lei 8.205/2023. Desde 2020, o grupo cataloga monumentos em todo o país associados à escravidão e defende a remoção dessas homenagens. Eles argumentam que figuras como o Marquês de Lavradio e o bandeirante Manuel Nunes Viana, ambos homenageados no Rio de Janeiro, perpetuam um passado de violência e opressão.
A historiadora Camilla Fogaça, uma das organizadoras do livro “Galeria de Racistas: Reparação, Agência e Resistência”, criticou duramente a revogação. Segundo ela, a medida reforça valores hegemônicos que excluem populações historicamente marginalizadas. “Essa decisão revela um descaso com demandas por participação no espaço público e contribui para perpetuar o racismo estrutural”, destacou.
O debate em torno da revogação também reacendeu reflexões sobre o significado de monumentos históricos. Para o historiador Heitor Fagundes Beloch, o julgamento de figuras do passado com os valores do presente pode ser problemático. Ele sugere que, em vez de remover estátuas, seria mais eficaz incluir novas homenagens a figuras antes excluídas da narrativa histórica.
Camilla Fogaça discorda, afirmando que a presença desses monumentos no espaço público reforça narrativas opressoras. Para ela, o debate transcende objetos físicos e envolve a disputa por valores e memórias coletivas.
A revogação da lei no Rio de Janeiro reflete um cenário de tensões entre reparação histórica e preservação do patrimônio cultural. Enquanto grupos antirracistas clamam por mudanças que representem uma sociedade mais inclusiva, críticos alertam para os riscos de reescrever a história sem considerar a complexidade dos contextos.
Com a decisão, o Rio de Janeiro deixa de ter uma das legislações mais avançadas do país no que diz respeito à revisão de homenagens públicas. O debate, contudo, está longe de ser encerrado e deve continuar reverberando em outras esferas, como o Congresso Nacional, onde tramita um projeto de lei sobre o tema.
Fonte: Agência Brasil