Pesquisadores brasileiros da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) desenvolveram um sistema inovador de inteligência artificial (IA) com o objetivo de prever complicações graves em pacientes com hanseníase. A tecnologia, batizada de Sistema Especialista para Previsão de Risco de Ocorrência de Estados Reacionais em Hanseníase (Separeh), pode ser acessada gratuitamente online e representa um avanço significativo na área da medicina preventiva, com potencial para evitar sequelas permanentes causadas pela doença.
A hanseníase, causada pela bactéria Mycobacterium leprae, é uma doença infecciosa crônica que atinge principalmente a pele e o sistema nervoso periférico. Embora tenha cura, se não tratada adequadamente e com agilidade, pode deixar marcas irreversíveis no corpo do paciente, como perda de sensibilidade, deformidades e até incapacidade física. O maior desafio clínico está nos chamados estados reacionais, episódios agudos que surgem durante ou após o tratamento da doença e que exigem intervenção médica imediata.
O Separeh foi criado com base em técnicas de mineração de dados e inteligência artificial, que permitem ao sistema cruzar informações de diferentes naturezas — como dados clínicos, laboratoriais, sociodemográficos e genéticos — para estimar a probabilidade de ocorrência desses estados reacionais. Para isso, os pesquisadores analisaram informações de 1.400 pacientes com hanseníase, coletadas em diferentes regiões do Brasil.
De acordo com o professor Marcelo Távora Mira, da Escola de Medicina e Ciências da Vida da PUC-PR, a plataforma foi projetada para operar com flexibilidade. Mesmo quando não se dispõe de todos os dados — como os genético-moleculares, geralmente ausentes em unidades básicas de saúde — o sistema ainda consegue gerar uma estimativa de risco. “Quanto mais dados forem inseridos, maior é a sensibilidade e a especificidade do sistema, que podem alcançar até 85,7% e 89,4%, respectivamente”, explica.
O acesso ao Separeh é livre e gratuito, o que tem contribuído para sua ampla disseminação. Desde que foi lançado, o site já registrou cerca de 6,5 mil acessos, oriundos de mais de 45 países. A ferramenta é uma importante aliada para profissionais da saúde que atuam no diagnóstico e acompanhamento da hanseníase, especialmente em áreas de maior incidência da doença.
Os estados reacionais previstos pelo sistema incluem dois tipos principais. O primeiro é a Reação Tipo 1 (RT1), também chamada de Reação Reversa, que se caracteriza por inflamações nas lesões cutâneas existentes ou surgimento de novas lesões dolorosas. O segundo é a Reação Tipo 2 (RT2), ou Eritema Nodoso Hansênico (ENH), que pode ocorrer após a morte de uma grande quantidade de bacilos, desencadeando resposta imune inflamatória intensa.
Ambos os quadros podem evoluir rapidamente e provocar danos neurais permanentes se não forem tratados com urgência. “Essas reações são imprevisíveis e podem acontecer mesmo após o fim do tratamento. Por isso, é fundamental identificar com antecedência os pacientes com maior risco de desenvolver tais complicações”, afirma Mira.
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2022 foram registrados cerca de 174 mil casos de hanseníase no mundo. O Brasil ocupa o segundo lugar nesse ranking, ficando atrás apenas da Índia. Apesar dos avanços no diagnóstico e no tratamento, o desafio de controlar os impactos das complicações da doença permanece uma prioridade na saúde pública brasileira.
O projeto do Separeh envolveu uma equipe multidisciplinar de pesquisadores e estudantes do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde (PPGCS) da PUC-PR. Houve ainda colaboração de outros programas da própria universidade, como o de Pós-Graduação em Informática (PPGIa) e o de Tecnologia em Saúde (PPGTS), além de parcerias externas com instituições renomadas como a Universidade de Brasília (UnB), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Lauro de Souza Lima e Fundação Hospitalar Alfredo da Matta (Fuham), entre outras.
A aplicação prática do Separeh ilustra como a inteligência artificial pode ser uma ferramenta poderosa para salvar vidas e melhorar a qualidade da atenção à saúde. Em um contexto em que muitas doenças negligenciadas ainda afetam milhares de pessoas em países em desenvolvimento, iniciativas como essa demonstram o valor da ciência brasileira e sua contribuição para um sistema de saúde mais equitativo e eficiente.
Fonte: Agência Brasil