Petel e Leonor. Leonor e Petel. Deixa-me, desocupado (a) leitor (a), colocar os dois assim, agarradinhos, bem juntinhos, um ao lado do outro, pelo menos no papel, já que na vida, Deus – ou sei lá quem, talvez o destino – decidiu mantê-los separados. Que aquilo que o poeta uniu, nenhum deus possa jamais separar! Já dizia Camões: “Cesse tudo o que a Musa antiga canta, que outro valor mais alto se alevanta!”. O que se alevanta é um amor, tão impossivel como o de Romeu e Julieta, cuja história te conto, agora, no aniversário de 77 anos da Leonor.
Começo te apresentando Leonor Pimentel, nascida em Óbidos (PA), no dia 01 de março de 1935. Ainda pequena, durante a II Guerra Mundial, mudou para Manaus, onde residia sua tia, dona Maria, mãe do ortopedista Edmilson Vilar de Aguiar. Foi ai que conheceu três irmãos: João Camilo, Sindoka e Petel, filhos da dona Geraldina Silva, que morava na Rua Carolina Neves, o popular Beco da Bosta, no bairro de Aparecida. Um deles conquistaria o coração da jovem paraense. Não foi Petel, o caçula.
Foi João, o taxista, que gamou pela Leonor, uma uva. (Na época, gatinha era “uva” ou “brotinho”). Depois de umas voltinhas de taxi com ela, ele engatou uma quarta, atolou o pé no acelerador e a pediu em casamento, celebrado na igreja de Aparecida. Ganharam de presente nupcial uma rádio-vitrola telefunken a válvulas, com olho mágico, último modelo, numa época em que ninguém no bairro tinha toca-disco. Foi a primeira vitrola que entrou no beco, colocada na sala da casa, em lugar nobre, ao lado da geladeira a querosene, exposta aos olhos curiosos de quem passava na rua.
Acontece que toca-disco só toca se tiver disco. Não havia nenhum. Era como se o taxi do Camilo não tivesse gasolina. E é precisamente aqui que entra o Petel: com a gasolina. Perdido de amor por sua cunhada, ele dá a ela de presente o LP do Waldick Soriano “Quem es tú?“, com vinte músicas, que por ser o único disco, durante algum tempo, tocava de manhã, de tarde, de noite, de madrugada, povoando o silêncio do beco. A música estrondava dentro da nossa casa, vizinha a da Leonor. Isso é que era o hit parade: o hit atravessando paredes com Tortura de amor:
– Volta / fica comigo / só mais uma noite / Quero viver junto a ti / Vooolta meu amor / Fica comigo / Não me desprezes / A noite é nooooossa / E o meu amoooor / pertence a ti.
Cacho da bananeira
A noite não era nossa, era do Petel. O disco estava pra furar. Deitado na minha rede, todas as noites eu dormia embalado por Waldick cantando na casa ao lado. Quer dizer, a voz era do Waldick, mas quem estava torturado de amor, mandando um recado, era o Petel. Honesta e fiel, Leonor nem dava confiança, como ficou evidente na quermesse de Aparecida quando Jefferson de Souza, o Bibi, leu no alto falante o seguinte Telegrama no ar:
– Alô-alô! Alô-alô! Você que se encontra passeando neste arraial, vestindo saia plissada azul e blusa de organdi branco, de mangas arredondadas, alguém que muito te ama, oferece a melodia Angústia. Assinado: Camilo Três.
A única ali, de saia plissada, era Leonor. A música, indubitavelmente, era endereçada a ela. Mas uma questão intrigava: quem se escondia detrás do pseudônimo de Camilo Três? O João Camilo, seu marido, não era, estava longe, numa corrida para o aeroporto de Ponta Pelada. Para complicar, alguém viu o Petel chorar como um bezerro desmamado, no arraial, quando a voz rascante de corno ferido do Waldick cantou no Serviço de Amplificação A Voz Quermesse de Aparecida:
– Angústia / de esperar por ti / tormento / de esperar-te amor / Contigo / se foi a ilusão / angústia / feriu meu coração.
O mistério só seria desfeito meses depois no Estádio da Colina, onde por pouco não ocorreu uma tragédia, com o suicídio de Romeu, digo do Petel.Te conto já já, mas antes veremos a Leonor, preocupada com as despesas da casa, que foram aumentando à medida em que as crianças iam nascendo: João Camilo Filho (Joreca), Leonildes (Tica), Socorrinha, Marlon Brando (Marlinho), Ronaldo (Naldinho), Carla e Cláudia. No balanço final foram 7 filhos, 16 netos e 4 bisnetos, o que obrigou Leonor a se virar para complementar a economia doméstica.
Leonor bananeira.Começou a vender banana e verdura, num quiosquezinho improvisado na sala de sua casa. Trabalhou ainda como apontadora do jogo do bicho, era lá que o Geraldão ia sempre fazer sua fezinha. Finalmente, abriu um salão de beleza, também na mesma sala, que funciona até hoje, com clientes fiéis que cortam o cabelo e aparam a barba: Tuta, Umberto Bacurau, Armando da Padaria, Jorge, Boneco, Fernando Porcão, além da Cecília, dona Marta, Dile e muita gente boa. O Lethinha, mesmo depois de rico, só pinta o cabelo de acaju no Salão Leonor Fashion Hair.
Leonor enviuvou cedo, mas educou todos os filhos pequenos com seu trabalho, vendendo banana, cortando cabelo. Hoje, a Tica é contadora profissional e o Naldinho, advogado da Caixa Econômica Federal, ambos moram há mais de trinta anos em Natal (RN). A Corrinha é funcionária do Tribunal de Justiça do Amazonas. O Joreca morreu, o Marlinho seguiu – digamos assim – o seu rumo, mas teve uma filha que mora nos Estados Unidos e é motivo de orgulho para a avó.
O tempo passou. Os sobrinhos foram crescendo, mas o Petel não desistia nunca de sua obsessão pela cunhada. Ele esnobou a Ceuzinha, divorciada, que vivia dando em cima dele. Fiel à Leonor, Petel soluçava e gemia de dor, cantando boleros do novo LP Waldick Sempre Waldick, lançado em 1967:
– Quem eu quero não me quer / quem me quer, mandei embora / É por isso que eu não sei / O que será de mim agora… / Não sou capaz de ser feliz / Nos braços de um amor qualquer / Ah! Se uma fosse a outra / Eu amo tanto essa mulher!
Camilo Três
A Leonor não dava a menor bola. Na véspera do Dia dos Namorados, dia 11 de junho de 1967, Petel, desesperado, atravessou o igarapé de catraia e foi assistir a decisão do campeonato amazonense de futebol: Rio Negro x Nacional, o famoso RIO-NAL no Estádio da Colina, que estava lotado. Aos quinze minutos, o Rio Negro fez 1 a 0, gol de Thomaz Passa-Fome. Antes do gol de empate do Edson Piola, um torcedor do Nacional subiu num poste de iluminação, e lá, no topo, fazia perigosas piruetas, desviando para si o olhar do público: mais de 12 mil pessoas. Se ele despencasse daquela altura, não salvava nem a alma.
Era o Petel, cheio do chá, que lá de cima gritava:
– Leonor, eu te amo, vou morrer por ti.
Começou a cantar e a sua voz era a do Waldick:
– Se eu morresse amanhã / alguém talvez sofreria / ao saber que foi culpada / deste amor desesperado / que causou-me agonia”. Aí, afinava a voz e imitava o coro de vozes femininas do estribilho: – “Alguém talvez sofreria / Alguém talvez sofreria.
Chamaram a polícia, os bombeiros. Eles nada conseguiram. Petel, lá de cima, desafiava o mundo, esgotando o repertório do Waldick para uma platéia que delirava e para quem o jogo já não tinha mais qualquer importância: “Quem despreza um grande amor, não merece ser feliz” – ele cantava, jurando: “Eu não sou cachorro não”. Chamaram o SNI, a CIA, o FBI e a Scotland Yard. Todo mundo pedia para ele descer. Petel respondeu entoando A Carta:
– Renunciaaaar, seria a solução / Mas não apagaria / de nossas almas / cruel paixão / Espero que um dia / tudo se consiga / e a quem ama não seja negado/ o direito de ser amado”.
Chamaram, então, dona Geraldina, sua mãe. Ela veio, de catraia. Chegou e gritou, debaixo do poste:
– Deixa de palhaçada. Desce, Manuel Camilo.
Ele desceu. Foi aí que o mundo soube que Petel se chamava Manuel Camilo. Nascida no dia 14 de julho, dona Geraldina era devota de São Camilo de Lelis, um ex-boemio, cachaceiro, viciado em jogo, que se converteu depois que curou uma ferida braba no pé. Virou santo e se tornou protetor dos doentes e dos hospitais. Por isso, ela batizou os tres filhos de João Camilo, Gumercindo Camilo e Manuel Camilo.
Estava desvendado o mistério. Camilo Três era o Petel, que morreu solteiro, em julho de 2008, aos 71 anos, fiel ao amor à sua cunhada, sem jamais ter namorado outra mulher. Leonor diz que tudo isso é invenção minha. Como invenção? Tá certo, confesso: sou um mentiroso profissional, mas nessa história aqui quero ver minha mãe mortinha no inferno, se estiver mentindo, quero que Santa Luzia me cegue.
Além disso, tem testemunhas idôneas.Umberto Bacurau, Tuta, Rubem Rola e Zé Buchinho ouviram quando Petel um dia me confessou na banca de tacacá de dona Alvina: – “Babá, Leonor rima com amor”. Podem perguntar deles, que estão vivos, não mentem, são íntegros, não passam nem ‘gato’ no dominó.
– Só não compreende o Petel quem desconhece o sabor de amar uma cunhadinha – diz o Rubem Rola.
Dizem que Petel ficava brechando a cunhada pelo banheiro coletivo de ripas que ficava no quintal. Mas isso sim, é pura fofoca. Podem conferir com a Leonor, que hoje, 4 de março, comemora seu aniversário com um tambaqui na brasa, em frente à sua casa, Rua Elisa Bessa, 30. De sobremesa, um creme de cupuaçu oferecido por sua vizinha, Regininha, mulher do Tuta.
A Leonor continua gatinha, “parece conservada em formol”, diz sua amiga Regina Nakamura. É que ela se cuida, participa das atividades físicas e lúdicas, orientada por Sandra Barros, uma profissional competente do Centro de Convivência do Idoso da Rua Wilkens de Matos. Mantém dieta equilibrada, só come peixe frito, com farinha e muita pimenta. Com todo o respeito, se o Petel Montecchio fosse vivo, baixava na Leonor Capuleto e lhe dava umas traulitadas.
Mas Leonor não é Julieta, Petel não é Romeu, e eu não sou Shakespeare, apenas o bardo do Beco da Bosta, que faço essa modesta homenagem a Leonor, no dia de seu aniversário, agradecendo a penca de bananas que ela enviou para mim quando eu vivia exilado na França.
Fonte: Taquiprati