Movimentos sociais e organizações em defesa dos direitos das mulheres intensificam a pressão sobre a Corte Constitucional do Equador para que a prática do aborto deixe de ser considerada crime no país. A articulação exige que o tribunal analise com urgência uma ação de inconstitucionalidade apresentada em março de 2024, que questiona o Artigo 149 do Código Orgânico Integral Penal — dispositivo que impõe penas de até três anos de prisão para quem realiza abortos, mesmo com o consentimento da mulher.
Atualmente, a legislação equatoriana autoriza a interrupção da gravidez apenas em casos que envolvam risco para a vida ou saúde da gestante e em situações de estupro. No entanto, a criminalização persiste em outros contextos, sendo considerada por especialistas um reflexo de uma constituição historicamente desigual e patriarcal.
“Esse é um crime que está previsto na nossa legislação desde 1872. Ele nasceu em uma constituição que não nos reconhecia como iguais, que nos colocava em posição de subordinação. Ainda hoje, essa herança continua penalizando mulheres que optam pelo aborto, além dos profissionais que as auxiliam”, explica Vivian Idrovo, advogada, mestre em direitos humanos e coordenadora da Aliança pelos Direitos Humanos do Equador. A coalizão reúne 14 entidades da sociedade civil que atuam na promoção das garantias fundamentais das mulheres.
Apesar da mobilização crescente, a ação ainda não foi apreciada pela Corte, o que tem gerado revolta entre os movimentos. No último dia 19 de março, ao completar um ano da entrega da petição, manifestações foram realizadas em várias cidades do país — incluindo Quito, Cuenca, Guayaquil, Loja, Lago Agrio, Imbabura, Esmeraldas, El Oro e até em São Cristóvão, no Arquipélago de Galápagos.
Durante os atos, foram entregues 168 cartas simbólicas à Corte Constitucional. Os relatos são de mulheres de diversas idades e etnias que passaram pela experiência do aborto ou acompanharam alguém próximo nesse processo. O número foi escolhido com base na estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), segundo a qual 168 mulheres interrompem a gravidez ilegalmente todos os dias no Equador.
“São histórias marcadas por medo, dor, culpa e solidão. Histórias de quem precisou se submeter a procedimentos clandestinos, correndo riscos gravíssimos. São vidas reais sendo negligenciadas por um sistema que insiste em puni-las em vez de protegê-las”, afirma Vivian Idrovo.
Entre os relatos, está o de uma jovem que decidiu abortar após ser enganada por um parceiro que disse ter feito vasectomia. Sem condições financeiras ou emocionais para criar uma criança, ela optou pela interrupção da gravidez. “Mesmo sabendo que tomei a decisão certa, o medo nunca passou. Medo de ser descoberta, medo de ser presa, medo de ser chamada de assassina. Esse medo é o que muitas de nós carregamos todos os dias”, descreve em sua carta.
Além da perseguição legal, os dados compilados por organizações locais revelam uma triste realidade: entre 2013 e 2023, 493 pessoas foram criminalizadas por aborto no país, das quais 21% eram meninas e adolescentes entre 12 e 17 anos. A maioria, 48%, tinha entre 18 e 29 anos, o que evidencia o impacto desproporcional da criminalização sobre a juventude.
Os números da OMS também apontam para o risco sanitário global: a cada ano, mais de 25 milhões de abortos inseguros são realizados no mundo, sendo responsáveis por até 13% das mortes maternas. Em países desenvolvidos, ocorrem cerca de 30 mortes para cada 100 mil procedimentos inseguros. Já nas nações em desenvolvimento, como o Equador, esse número sobe para alarmantes 220 por 100 mil.
No Brasil, a pauta avança de maneira semelhante. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que propõe a descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação, ainda aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). A legislação brasileira autoriza o procedimento apenas em três situações: estupro, risco à vida da gestante e anencefalia fetal.
“O cenário brasileiro é de grande pressão política. O STF está sob forte influência de pautas conservadoras, o que dificulta o avanço da discussão sobre direitos sexuais e reprodutivos”, observa Luciana Boiteux, professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e uma das signatárias da ADPF.
Segundo ela, o aborto deve ser tratado como questão de saúde pública. “As mortes maternas associadas ao aborto inseguro são evitáveis. Criminalizar essas mulheres é desumano e ineficaz. Precisamos olhar para a experiência de outros países e abrir esse debate com seriedade”, defende a professora.
A luta pela descriminalização do aborto no Equador e em outras nações latino-americanas expõe o confronto entre direitos fundamentais e tradições enraizadas, em grande parte influenciadas por valores religiosos. A mobilização social tem mostrado que o tema não é apenas jurídico ou moral, mas profundamente humano. Mulheres exigem, cada vez mais, autonomia sobre seus corpos — e que o Estado reconheça esse direito como inalienável.
Fonte: Agência Brasil