A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou na terça-feira (5) o tombamento do Parque Industrial da Companhia Usina Cambahyba, localizado em Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense. A medida, que ainda aguarda sanção do governador Cláudio Castro, visa preservar o local como patrimônio histórico, impedindo modificações que possam comprometer seu valor simbólico e cultural. Esta decisão tem grande relevância histórica, pois a usina foi mencionada nos depoimentos da Comissão Nacional da Verdade como palco de atrocidades da ditadura militar, além de estar no centro de disputas de reforma agrária lideradas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
O tombamento do Parque Industrial da Usina Cambahyba é um marco importante para a memória histórica do Brasil, contribuindo para a preservação de um local onde corpos de desaparecidos políticos foram incinerados durante o regime militar. O objetivo é garantir que este espaço se torne um ponto de reflexão sobre as violações de direitos humanos e as marcas deixadas pela ditadura. A proposta de tombamento, além de preservar o espaço, permite a realização de intervenções que promovam a criação de um centro cultural, honrando as vítimas e mantendo viva sua memória para futuras gerações.
A Usina Cambahyba ganhou notoriedade nacional após o depoimento do ex-delegado Cláudio Guerra à Comissão Nacional da Verdade. Guerra revelou que corpos de 12 desaparecidos políticos foram incinerados nas caldeiras da usina, um relato que trouxe à tona a brutalidade do regime e a repressão sofrida por aqueles que lutaram contra a ditadura. Entre as vítimas estão figuras como Ana Rosa Kucinski Silva, Armando Teixeira Frutuoso e David Capistrano da Costa, cujas histórias fazem parte do complexo legado de luta e resistência dos opositores ao regime militar.
Além do seu papel histórico no período da ditadura, o Complexo Cambahyba, composto por sete fazendas, é um símbolo de disputas agrárias mais recentes. Em 1998, a área foi declarada improdutiva, o que a tornou alvo de reivindicações do MST. Em 2021, a Justiça Federal determinou a desapropriação de uma das fazendas para fins de reforma agrária, o que resultou na criação do Acampamento Cícero Guedes, que atualmente abriga cerca de 300 famílias. Essa interseção entre a memória da ditadura e a luta pela terra é enfatizada pelo historiador Lucas Pedretti, que vê o local como emblemático da violência estatal no Brasil.
Historicamente, o Brasil carece de políticas públicas de memória voltadas para o período da ditadura militar, especialmente no que se refere à criação de museus ou memoriais. O Parque Industrial Cambahyba é um dos poucos exemplos de reconhecimento da importância de preservar esses locais de memória e resistência. Outro caso emblemático é a Casa da Morte, em Petrópolis, na Região Serrana do Rio, que abrigou centros clandestinos de tortura e assassinato. Em 2024, o governo federal anunciou parceria com a prefeitura de Petrópolis para transformar a residência em um memorial da ditadura militar, uma iniciativa que visa dar visibilidade aos crimes do regime.
Outras propostas para memoriais também enfrentam desafios. O prédio do antigo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), no centro do Rio, é alvo de uma disputa entre a Polícia Civil e movimentos sociais. Enquanto a polícia propõe a criação de um museu sobre sua própria história, organizações como o Coletivo RJ Memória Verdade Justiça e Reparação defendem que o prédio se torne um centro de memória e direitos humanos. Em outubro deste ano, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) anunciou que recomenda a transformação do 1º Batalhão de Polícia do Exército no Rio de Janeiro, onde funcionou o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em um memorial.
Esses locais representam o esforço para superar a “cultura do esquecimento” que historicamente silenciou as vítimas da violência estatal. Segundo Pedretti, os defensores do esquecimento têm sido muito eficazes em garantir que essa história não seja abordada, prevalecendo a ideia de que o passado deve ser deixado de lado em nome da reconciliação. Ele aponta que essa dificuldade de lidar com memórias traumáticas não se limita à ditadura: “Até pouco tempo, por exemplo, não havia nenhuma iniciativa no Rio de Janeiro sobre a escravidão”.
A criação do Museu do Trabalho e dos Direitos Humanos em Barra Mansa é um dos poucos avanços na preservação da memória da repressão no estado do Rio de Janeiro. Inaugurado em maio de 2024, o museu ocupa o antigo 1° Batalhão de Infantaria Blindada do Exército, que serviu como centro de tortura durante o regime militar. A iniciativa foi organizada pelo Centro de Memória do Sul Fluminense Genival Luiz da Silva (CEMESF), da Universidade Federal Fluminense (UFF), e representa um exemplo bem-sucedido de resistência à “cultura do esquecimento”.
Para o historiador Pedretti, é fundamental superar a visão de vítimas “compartimentadas”, onde grupos são tratados de forma isolada: as vítimas da ditadura, os trabalhadores rurais, as vítimas da violência no campo, entre outros. Segundo ele, esses grupos foram atingidos pela mesma lógica de violência de Estado, que busca preservar uma ordem social desigual e patriarcal. O tombamento do Parque Industrial da Usina Cambahyba representa, assim, uma conquista significativa na luta pela memória e justiça social, mantendo viva a história daqueles que sofreram pela manutenção de seus ideais e direitos.
Fonte: Agência Brasil