Era tarde de domingo quando o celular de Andréa Lacerda Bachettini, professora e pesquisadora do Departamento de Museologia, Conservação e Restauro da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), começou a ser inundado por mensagens e vídeos. Eram imagens postadas nas redes sociais, quase em tempo real, mostrando os atos de vandalismo e destruição promovidos por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro na Praça dos Três Poderes, em Brasília, naquele fatídico 8 de janeiro de 2023. Naquele dia, os golpistas tentaram depor o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que havia sido empossado uma semana antes. Entre as imagens chocantes, a destruição de obras de arte e mobiliário do Palácio do Planalto, de valor histórico e cultural inestimável, causava uma dor profunda.
A restauração de obras de arte danificadas por atos de vandalismo não só é uma questão técnica, mas também uma maneira de preservar a memória e o patrimônio cultural de uma nação. Quando os atos de depredação foram transmitidos, Andréa e seus colegas da UFPel ficaram consternados. “Foi muito triste e revoltante. A gente se questionava: ‘temos que fazer alguma coisa!'”, relata a professora, que rapidamente, junto com seus colegas, enviou uma carta à reitora da universidade, colocando o departamento à disposição do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e do governo para ajudar na restauração.
A proposta de colaboração foi aceita alguns meses depois, com o Iphan firmando uma parceria com a UFPel. Através de um Termo de Execução Descentralizada (TED), o instituto repassou R$ 2,2 milhões para a universidade, que foi destinado à compra de equipamentos, contratação de bolsistas e custos logísticos. Essa parceria possibilitou a montagem de uma estrutura laboratorial inédita no Palácio da Alvorada, envolvendo cerca de 30 profissionais, entre professores, pesquisadores, estudantes e servidores, com o objetivo de restaurar completamente as 20 obras de arte danificadas durante o ataque.
Cerca de um ano e meio após o início do projeto, quase todas as obras já estão com o restauro finalizado. Este trabalho minucioso não apenas devolve a integridade das obras, mas também representa um símbolo de resistência e defesa da democracia brasileira. Entre as obras restauradas está “As Mulatas à mesa”, de Emiliano Di Cavalcanti, que foi uma das peças mais afetadas, com sete cortes profundos.
A restauração da tela de Di Cavalcanti foi um processo minucioso, que envolveu técnicas avançadas para preservar tanto a parte estética quanto a histórica da obra. “Foi uma opção política deixar os rasgos na parte de trás da tela visíveis, para registrar essa memória de brutalidade”, explicou o presidente do Iphan, Leandro Grass. A obra, uma das mais importantes do acervo presidencial, agora está completamente restaurada e pronta para ser novamente exibida.
Outro exemplo de agressão às obras de arte foi a escultura “O Flautista”, de Bruno Giorgi, que foi quebrada em quatro partes. Também foi danificada a escultura “Vênus Apocalíptica”, da argentina Marta Minujín, que foi arremessada do quarto andar do Palácio do Planalto. Ambos os casos demandaram técnicas avançadas de restauração, com profissionais especializados dedicando horas para devolver a integridade das obras.
Um dos episódios mais chocantes foi a destruição de um relógio do século XVII, construído por Balthazar Martinot Boulle, presente da corte francesa ao imperador Dom João VI em 1808. A restauração deste item histórico está sendo conduzida com o apoio da Embaixada da Suíça no Brasil e envolve um cuidadoso trabalho de recuperação.
Além da restauração física das peças, o projeto trouxe descobertas importantes sobre a autoria de algumas obras, como a tela expressionista “Pássaro”, agora atribuída ao pintor inglês Martin Bradley, e um vaso cerâmico renascentista italiano, anteriormente sem identificação. Essas descobertas enriquecem ainda mais o valor cultural das obras.
Como parte dos desdobramentos do projeto, será produzido um livro, um documentário e ações educativas serão realizadas em escolas públicas do Distrito Federal, promovendo o patrimônio cultural e o valor da preserva ção da democracia. Além disso, uma exposição temporária no Iphan em Brasília oferece ao público a oportunidade de conhecer de perto o processo de restauração das obras vandalizadas.
A restauração das peças depredadas no ataque de 8 de janeiro representa um esforço conjunto para reparar não só danos materiais, mas também a confiança na preservação da cultura e da democracia. “Essas obras são do povo brasileiro e representam a vitória da democracia e da liberdade”, afirmou Leandro Grass, ao comentar a importância de devolver ao público as obras recuperadas.
Fonte: Agência Brasil