O uso constante de dispositivos digitais — desde o momento em que se acorda até a hora de dormir — tornou-se um hábito rotineiro na vida de milhões de brasileiros. Mas será que esse comportamento configura um vício? Para a psicóloga Anna Lucia Spear King, doutora em saúde mental e uma das fundadoras do Instituto Delete, a resposta nem sempre é sim. Muitas vezes, o que se vê é uma “má educação digital”, algo que pode ser corrigido com orientação e mudança de hábitos.
O Instituto Delete foi criado em 2013, dentro do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e é pioneiro no Brasil em pesquisas sobre o impacto das tecnologias na saúde mental. Em entrevista à Agência Brasil, a pesquisadora explicou como o uso excessivo de telas, redes sociais e jogos pode afetar a vida das pessoas, além de destacar a importância da educação digital desde a infância.
King relata que o instituto começou a atender, ainda na década de 2000, pacientes que usavam a tecnologia de forma descontrolada. “Eles se queixavam de uma dependência digital, mas, muitas vezes, essa dependência escondia transtornos anteriores, como fobia social, depressão ou compulsão”, conta.
Com a chegada dos smartphones e, principalmente, após a pandemia de covid-19, o uso intensivo da tecnologia se intensificou. A psicóloga afirma que isso gerou confusão entre o uso contínuo por necessidade ou lazer e o vício patológico. “Nem todo mundo que passa horas no celular está viciado. Muitas pessoas apenas não aprenderam a usar com moderação. Falta educação digital”, ressalta.
Nomofobia: quando o uso vira doença
O vício real, segundo King, é chamado de nomofobia, que é a dependência patológica de dispositivos digitais, geralmente associada a transtornos mentais como ansiedade, depressão ou compulsão. Quando há esse diagnóstico, o tratamento é conduzido por psicólogos e psiquiatras, podendo incluir o uso de medicamentos e terapia.
“Se a pessoa chega dizendo que está viciada, fazemos uma avaliação psicológica e psiquiátrica. Se for o caso, damos orientações para uso consciente. Mas, se identificarmos transtornos associados, aí sim é necessário um tratamento clínico mais profundo”, explica.
Os sinais de alerta incluem prejuízos na vida profissional, acadêmica, social ou familiar. “Tem gente que é demitida porque não larga o celular no trabalho. Casais brigam por causa do uso excessivo. Adolescentes deixam de estudar. Tudo isso são sinais de alerta”, alerta a especialista.
Jogos e apostas online: risco crescente
Outro ponto de atenção citado por King é o aumento da procura por ajuda de pessoas com vício em jogos online e apostas. Ela explica que essas plataformas são construídas para criar dependência, usando estímulos químicos no cérebro como dopamina e serotonina, que causam sensação de prazer.
“A pessoa ganha no início, se empolga, e quando vê já está perdendo dinheiro, se endividando, brigando com a família. O cérebro associa o jogo ao prazer, mesmo que a vida real não esteja oferecendo esse mesmo estímulo. E ela volta, mesmo sabendo que vai perder”, destaca.
Redes sociais: curtidas que viciam
As redes sociais também operam de maneira semelhante, segundo a psicóloga. Cada curtida, comentário ou elogio ativa o sistema de recompensa do cérebro. “É por isso que as pessoas checam o celular o tempo todo. Elas estão em busca desse estímulo positivo constante”, observa.
Crianças e adolescentes: o papel dos pais
Para King, a responsabilidade sobre o uso das tecnologias por crianças e adolescentes é inteiramente dos adultos. Ela critica a ausência de supervisão e reforça que menores de idade não devem acessar a internet livremente.
“O quarto do adolescente não pode ser território livre. A internet é uma porta aberta para o mundo, inclusive para pessoas perigosas. Os pais precisam estar atentos, saber com quem os filhos conversam e quais sites acessam. Mas muitos pais também não sabem orientar porque não foram educados digitalmente”, afirma.
Ela defende que a orientação comece cedo, da mesma forma como se ensina a escovar os dentes ou comer de garfo e faca. E elogia a recente medida que proíbe o uso irrestrito de celulares em escolas públicas e privadas.
“Sou totalmente a favor. Com essa medida, os alunos voltam a se socializar, a praticar esportes, a perder a timidez. A escola é lugar de interação e aprendizado. O celular pode ser usado, mas com supervisão pedagógica”, reforça.
Dicas para um uso mais saudável
A especialista do Instituto Delete recomenda pequenas mudanças de comportamento para promover uma relação mais saudável com as telas:
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Evite usar o celular logo ao acordar;
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Desconecte-se durante as refeições;
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Desligue os aparelhos pelo menos duas horas antes de dormir;
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Não use o celular em locais públicos ou durante interações sociais;
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No trabalho, mantenha o foco e evite o uso pessoal da tecnologia durante o expediente;
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Estabeleça horários específicos para checar redes sociais.
“Somos a favor da tecnologia, mas do uso consciente. Se usada com equilíbrio, a tecnologia pode trazer muitos benefícios. O problema é quando ela passa a dominar a nossa vida”, conclui.
Fonte: Agência Brasil